19 março 2010

O poder da BURRICE

"Duas coisas são infinitas: o universo e a burrice humana. Mas a respeito do universo ainda tenho dúvidas", disse Albert Einstein.

Componente inalienável da natureza humana, a burrice é, provavelmente, a força mais perigosa do cosmos.

O que significa burrice?
O conceito não tem uma definição teórica
indiscutível. Não é o oposto de inteligência: há pessoas inteligentes que,
vez por outra, fazem o papel de burras.
Uma definição convincente foi dada pelo historiador e economista italiano
Carlo Cipolla: “Uma pessoa burra é aquela que causa algum dano a outra
pessoa ou a um grupo de pessoas sem obter nenhuma vantagem para si mesmo –
ou até mesmo se prejudicando.”
A burrice tem a peculiar vocação de se traduzir em ações, e por isso mesmo
se torna perigosa. Segundo Cipolla, que identificou cinco “leis fundamentais
da burrice” (veja quadro à pág. ??), até mesmo os mais inteligentes tendem a
desvalorizar os riscos inerentes à burrice. E ela é mais perigosa que a
crueldade: esta, tendo uma lógica compreensível, pode pelo menos ser
prevista e enfrentada. Para começar, pensemos naqueles que, em tempos de
Aids, mantêm relações sexuais sem proteção ou nos que não usam um antivírus
no próprio computador, expondo a si mesmos e aos outros ao contágio de vírus
reais ou virtuais.
A burrice sempre ofereceu cenas e personagens cômicos, como no conto de
Andersen A roupa nova do imperador, no qual dois alfaiates mal-intencionados
convencem o rei a vestir uma roupa maravilhosa, invisível para as pessoas
burras. Era uma armadilha: ninguém queria admitir a própria burrice nem
contradizer o soberano afirmando não ver a roupa (que de fato não existia).
Só um menino teve a coragem de dizer que o rei estava nu, revelando a
trapaça. Mas, atenção: rir da burrice pode deixá-la “simpática” e, portanto,
desvalorizada. Se na ficção o estúpido é facilmente reconhecido, na vida
real as coisas são diferentes.

*A burrice tem três características fundamentais: *
*1) *Ela é inconsciente e recidiva: o burro não sabe que é burro e tende a
repetir várias vezes o mesmo erro. Tais características contribuem para dar
mais força e eficácia à ação devastadora da burrice. A pessoa estúpida não
reconhece os próprios limites, fica fossilizada em suas convicções
particulares e não sabe mudar. Por isso, como diz o psicólogo italiano Luigi
Anolli, “no âmbito clínico, a burrice é a pior doença, por ser incurável”. O
estúpido é levado a repetir os mesmos comportamentos porque não é capaz de
entender o estrago que faz e, portanto, não consegue se corrigir.
*2) *A burrice é contagiosa. As multidões são muito mais estúpidas que as
pessoas que as compõem. Isso explica por que populações inteiras (como
aconteceu na Alemanha nazista ou na Itália fascista) podem ser facilmente
condicionadas a perseguir objetivos insanos, um fenômeno bastante conhecido
na psicologia. “O contágio emotivo próprio do grupo diminui a capacidade
crítica”, explica Anolli. “Percebe-se a polarização da tomada de decisão:
escolhe-se a solução mais simples, que na maioria das vezes é a menos
inteligente.”
*3)* Além da coletividade, há um outro fator que amplifica a burrice: estar
numa posição de comando. “O poder emburrece”, afirmava o filósofo alemão
Friedrich Nietzsche. Por quê? Quando estão no poder, as pessoas muitas vezes
são induzidas a pensar que, justamente por ocuparem aquele posto, são
melhores, mais capazes, mais inteligentes e mais sábias que o resto da
humanidade. Além disso, estão cercadas de aduladores, seguidores e
aproveitadores que reforçam o tempo todo essa ilusão. Dessa forma, quem está
no governo chega a cometer as mais graves faltas com a aprovação geral. **
*Todos temos um fator de burrice maior do que imaginamos. Ele leva
cientistas a só considerar um estudo sério quando coincide com seu ponto de
vista. Mas o otimismo, mesmo sem base sólida, prolonga a vida, como
demonstraram freiras norte-americanas.*

*Campeões da confusão*

O cinema está repleto de heróis estúpidos que armam confusões sem fim, para
si e para os outros, resultando em divertidas comédias. Veja, a seguir,
algumas das mais famosas.
• Laurel e Hardy em Mestres do Baile (1943)
• Peter Sellers em A Pantera Cor-de-Rosa (1963) e Um Convidado bem Trapalhão
(1968)
• Steve Martin em O Panaca (1978)
• Jim Carrey em Debi e Lóide (1995)
• Tom Arnold em Os Babacas (1996)
• Mike Myers em Austin Powers (2002)
• Steve Carell em Agente 86 (2008)

*O PODER – SEJA ELE* político, econômico ou burocrático – aumenta o
potencial nocivo de uma pessoa burra. Um exemplo extremo é dado no filme Dr.
Fantástico, de Stanley Kubrick. Nele, um grupo de estúpidos de grau máximo
pensa em detonar uma carga explosiva nuclear que levará ao fim do mundo, por
uma simples frivolidade.
Por seu lado, o rei Luís 16, no dia 14 de julho de 1789 (a data da Queda da
Bastilha, evento que deu início à Revolução Francesa), escreveu em seu
diário: “Hoje, nada de novo.” O mesmo obtuso e burro senso de
invencibilidade fez o general George Custer supervalorizar suas forças e
atacar os índios em Montana (EUA), em 1876. Resultado: centenas de soldados
do Exército norte-americano foram massacrados pelos índios sioux e cheyennes
no riacho Little Big Horn. Ou, ainda, levou Napoleão a atacar a Rússia em
pleno inverno de 1812: o Exército francês foi dizimado pelo frio e pela
exaustão. Sem contar as previsíveis tragédias das guerras do Vietnã e do
Iraque de hoje.
Em cada um de nós há um fator de burrice que é sempre maior do que
imaginamos. Isso não é, necessariamente, um problema. Ao contrário, a
estupidez tem uma função evolutiva: serve para nos fazer agir
precipitadamente, sem pensar muito, o que em certos casos se revela mais
útil do que não fazer nada. A burrice nos permite errar, e na experiência do
erro há sempre um progresso do conhecimento. Assim, o ponto-chave para
anular a burrice está em reconhecer os próprios erros e se corrigir. Como
dizia o escritor francês Paul Valéry: “Há um estúpido dentro de mim. Devo
tirar partido de seus erros.”
Como? Um estudo da Universidade de Exeter (Grã-Bretanha), publicado no
Journal of Cognitive Neuroscience, identificou uma área do cérebro – no
córtex temporal – que é ativada quando está para se repetir um erro já
cometido: um sinal de alarme nos impede de recair na mesma situação. Se na
base da burrice existisse uma anomalia localizada, talvez um dia pudéssemos
corrigi-la com uma cirurgia. Desde que não caíssemos nas mãos de um
cirurgião idiota.

*TODOS NÓS ESTAMOS* prontos a admitir que somos um pouco loucos, mas burros,
jamais. Fuçando na literatura científica, é possível descobrir que somos um
pouco burros, cada qual de um jeito diferente; mas o cérebro funciona de
forma a nos esconder essa realidade. E mais: podemos descobrir que, apesar
de tudo, é melhor assim.
As estatísticas indicam que 50% dos motoristas não sabem dirigir: um tem
dificuldade para estacionar, outro circula a 20 km/h, um terceiro ocupa duas
faixas como se a rua fosse dele. Mas quem não sabe dirigir não tem
consciência disso, ou desistiria, preferindo o transporte público e
aumentando, assim, as próprias (e as alheias) possibilidades de
sobrevivência. O mesmo exemplo pode ser aplicado às pistas de esqui, ao
universo de trabalho, ao campo de futebol e assim por diante.
Quem é suficientemente inteligente para reconhecer que não sabe guiar
direito? Se formos a um hospital e entrevistarmos os recémretirados das
ferragens de um carro, descobremos que ninguém admite integrar a categoria
dos incapazes. Pesquisas mostram que 80% das pessoas internadas por acidente
de carro acreditam pertencer à elite dos motoristas com habilidades
superiores à média. E a responsabilidade do acidente? A maioria atribui seus
erros à falta de sorte ou a algum idiota que cruzou seu caminho.
*Ações suicidas *
Em 1876, o general George Custer, no comando da 7ª Cavalaria americana,
decidiu atacar – apesar do pequeno contingente disponível – um grande
acampamento sioux em Little Big Horn. Os soldados foram todos massacrados.
Um exemplo da burrice no poder.

*E TEM MAIS.* Imaginese agora como um verdadeiro fracassado em um
determinado setor – por exemplo, na pintura, na natação, em estatística. E
tente imaginar ser suficientemente inteligente para admiti- lo. Não se
iluda: também aqui seu lado burro será revelado. “Seu cérebro encontrará um
obstáculo, atenuando a importância daquele setor”, explica Cordelia Fine,
pesquisadora no Centro de Filosofia Aplicada e Ética Pública da Universidade
de Melbourne (Austrália).
“Aquela carência não o incomodará mais”, prossegue ela, “pois seu cérebro
tenderá a considerar o desenho, a natação e a estatística como atividades
supérfluas”. Assim, é melhor nos contentarmos em admitir que nossas
fraquezas são comuns o bastante para fazer parte da falibilidade humana,
enquanto nossos pontos fortes são raros e especiais.
Há uma explicação para esse comportamento? “A falência é a principal inimiga
do nosso ego e da nossa auto-estima. É por isso que o cérebro, um grande
vaidoso, faz o máximo para bloquear o caminho a essa hóspede indesejada”,
acrescenta a pesquisadora.
Isso não é uma grande novidade, visto que no frontão do templo de Delfos, na
Grécia, estava escrito: “Conhece-te a ti mesmo e conhecerás o universo e os
deuses.” Mas o autoconhecimento não é tão fácil: a idéia de quem somos varia
de acordo com as necessidades. Em 1989, Rasyid Sanitioso e Ziva Kunda, na
época psicólogos na Universidade de Princeton (EUA), mostraram a alguns
jovens pesquisadores falsos estudos que documentavam um maior sucesso das
pessoas extrovertidas. A outros deram pesquisas que premiavam os
introvertidos. Pois bem: os estudantes se identificavam com qualquer dos
traços de personalidade apresentados como passaporte para o sucesso...
*VÁRIAS ESCOLHAS* absurdas são feitas de maneira burra, sem uma avaliação
dos prós e contras, dados e estatísticas reais. Casar-se, por exemplo, é uma
decisão que implica um vínculo para toda a vida. Quem, cruzando as portas da
igreja ou do cartório, tem a perfeita consciência de que, segundo as
estatísticas, o casamento tem 50% de chance de dar errado? No momento do
“sim”, só sabem disso os pais dos noivos, os avós, os amigos, parentes e até
mesmo o padre e o juiz. Os interessados diretos demonstram uma obstinação
cega, perfeitamente convencidos de que sua união será uma exceção a todas as
regras. Até porque, se não estivessem seguros, a continuidade da raça humana
dependeria da péssima eficácia dos contraceptivos e o Homo sapiens poderia
já estar extinto.
E a capacidade de admitir nossos erros de avaliação? Quase inexistente:
estamos atados a nossas convicções como se elas fossem coletes salva-vidas.
O que pedimos ao mundo não são novos desafios a nossas ideologias políticas
e sociais. Preferimos amigos, livros e jornais que compartilham e confirmam
nossos iluminados valores. Mas, cercando-nos de pessoas oportunistas,
reduzimos a chance de que nossas opiniões sejam questionadas.
Também nos vários setores da pesquisa, a burrice se apresenta pontualmente:
os envolvidos tendem a considerar um estudo sério e convincente quando os
resultados coincidem com seu ponto de vista; ou julgamno ultrapassado e
cheio de defeitos quando vão de encontro a suas expectativas. Esse fator
explica por que muitas vezes é inútil tentar demover um obstinado de manter
idéias claramente erradas.
Todas as vezes que nosso cérebro pensa no futuro, tende a produzir previsões
otimistas. Por exemplo: estamos sempre certos de que nosso time do coração
vai ganhar o jogo, embora haja outra possibilidade. As previsões
“autocelebrativas” também acontecem nas bancas de apostas, nos cassinos e
nas loterias, nas quais as pessoas desperdiçam dinheiro porque a capacidade
de julgamento fica dominada pelo desejo de vencer. Qual é a razão desse
estúpido otimismo do cérebro? Ele nos protege contra as verdades
desconfortáveis.

*HÁ PESSOAS QUE* chegam incrivelmente perto da verdade sobre si mesmas e a
respeito do mundo. Elas têm uma percepção equilibrada, são imparciais quando
se trata de atribuir responsabilidades de sucessos e fracassos e fazem
previsões realistas para o futuro. Testemunhas vivas do quanto é arriscado
conhecer a si mesmas, elas são, para muitos psicólogos, pessoas clinicamente
depressivas. Martin Seligman, docente de psicologia na Universidade da
Pensilvânia (EUA), demonstrou que o chamado “estilo explicativo” pessimista
é comum entre os deprimidos: quando fracassam, assumem toda a culpa,
consideram-se burros, péssimos em tudo e se convencem de que essa situação
vai durar para sempre.
E quais são os resultados de tanta (às vezes excessiva) honestidade
intelectual? Deborah Danner, pesquisadora da Universidade de Kentucky (EUA),
examinou os efeitos da longevidade em 180 noviças norte-americanas,
otimistas e pessimistas. Quanto mais otimistas se mostravam as religiosas,
mais tempo viviam. As mais joviais viveram em média uma década além das
pessimistas. É claro que ser realistas e ao mesmo tempo serenos e otimistas
seria o ideal; mas não há dúvida de que às vezes um pouco de burrice faz
bem.

*Equipe Planeta*

REVISTA PLANETA -
http://www.terra.com.br/revistaplaneta/edicoes/432/artigo103113-1.htm

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